A cultura organizacional influencia diretamente a forma como pessoas se relacionam dentro das empresas. Quando essa cultura é marcada por paternalismo excessivo e desconfiança, surge um fenômeno que especialistas em gestão chamam de infantilização no trabalho. Isso ocorre quando colaboradores são tratados como incapazes de assumir responsabilidades, precisando de supervisão constante e tendo sua autonomia reduzida. Embora pareça apenas um estilo de liderança, essa prática tem custos invisíveis, que vão desde queda de produtividade até impactos graves na saúde mental e na retenção de talentos.
Este artigo explora, a partir de estudos antropológicos, psicológicos e organizacionais, como a infantilização se manifesta, quais são seus custos ocultos e de que forma empresas podem construir um pacto claro entre papéis e responsabilidades para reduzir esse problema estrutural.
O que é infantilização no trabalho?
A infantilização no ambiente profissional pode ser entendida como a prática de tratar trabalhadores de forma condescendente, limitando sua autonomia e capacidade de decisão. Isso pode ocorrer em pequenas atitudes, como o uso de linguagem diminutiva ou protetora, mas também em práticas estruturais, como a centralização excessiva de decisões, a microgestão e a exclusão de colaboradores de processos estratégicos.
Na antropologia, esse tipo de prática se aproxima do conceito de paternalismo social, em que um grupo de maior poder cria mecanismos de dependência, retirando do outro grupo a capacidade de agir com plena agência. No trabalho, esse paternalismo aparece em discursos como:
“Deixe que eu resolvo, você ainda não está pronto.”
“É melhor não tomar essa decisão sozinho.”
“Prefiro que siga exatamente este passo a passo.”
O resultado é uma relação assimétrica em que o colaborador é colocado em uma posição de menoridade simbólica, semelhante à infantilização cultural descrita por estudiosos como Erving Goffman, que analisava rituais de interação social e o poder do discurso em manter hierarquias.
As raízes culturais da infantilização
Infantilizar não é apenas uma prática gerencial isolada. É também reflexo de padrões culturais enraizados.
Herança hierárquica
Em sociedades de tradição fortemente hierarquizada, como a brasileira, há uma tendência de valorizar figuras de autoridade rígidas, em que o poder deve ser centralizado. Essa lógica se transfere para as empresas, reforçando comportamentos de tutela.Controle como sinônimo de produtividade
Muitas lideranças ainda associam controle detalhado à eficiência. Contudo, pesquisas em psicologia organizacional, como as de Hackman & Oldham sobre desenho de cargos, mostram que autonomia está diretamente ligada à motivação intrínseca e ao desempenho.Medo do erro
A ausência de uma cultura de tolerância ao erro estimula práticas de infantilização. Líderes preferem restringir decisões a poucos níveis hierárquicos, em vez de permitir aprendizado com falhas.Gênero e desigualdade
A infantilização afeta de forma desproporcional as mulheres no mercado de trabalho. Pesquisas sobre benevolent sexism (sexismo benevolente), conduzidas por Peter Glick e Susan Fiske, mostram como atitudes “protetoras” acabam reforçando estereótipos de fragilidade, limitando o crescimento de profissionais do sexo feminino.
Custos invisíveis da infantilização
Embora, à primeira vista, a infantilização no trabalho possa parecer apenas um detalhe cultural ou de estilo de liderança, seus efeitos são amplos e silenciosos. Assim, é importante compreender seus diferentes impactos:
Redução da confiança individual: quando gestores tratam adultos como incapazes de tomar decisões, enfraquecem a percepção de valor dos colaboradores. Portanto, a inovação tende a ser sufocada e a motivação, reduzida.
Prejuízos à saúde mental: pesquisas em psicologia organizacional mostram que ambientes de baixa autonomia aumentam o estresse e a ansiedade. Desse modo, a infantilização cria um ciclo de insegurança que pode evoluir para esgotamento emocional.
Queda no desempenho coletivo: equipes que precisam reportar cada detalhe ao gestor gastam tempo em burocracia. Consequentemente, o custo de oportunidade aumenta, já que a energia que poderia ser investida em inovação é desviada para controles excessivos.
Impacto econômico direto: estudos do MIT Sloan Management Review indicam que empresas que oferecem autonomia têm maior retenção de talentos. Em contrapartida, aquelas que infantilizam sofrem com alta rotatividade, o que gera custos adicionais com demissões e treinamentos.
Dessa forma, fica evidente que os custos invisíveis da infantilização se manifestam tanto no bem-estar humano quanto nos resultados financeiros, corroendo a motivação individual, travando a inovação coletiva e comprometendo a sustentabilidade da empresa.
A importância do “pacto claro” entre papéis e responsabilidades
Um dos caminhos mais eficazes para reduzir a infantilização é estabelecer um pacto explícito entre empresa, liderança e colaboradores, deixando claro:
Quais são as responsabilidades de cada papel.
Quais decisões podem ser tomadas de forma autônoma.
Quais critérios guiam a avaliação de desempenho.
Esse tipo de clareza reduz a ambiguidade, aumenta a confiança e fortalece a accountability. Empresas que aplicam modelos como a matriz RACI (Responsible, Accountable, Consulted, Informed) conseguem descentralizar decisões sem perder governança.
Evidências práticas e estudos que embasam a mudança
Vários estudos já mostraram os efeitos da autonomia e do reconhecimento na performance:
Deci & Ryan (Teoria da Autodeterminação): a motivação intrínseca depende de três fatores — autonomia, competência e conexão social.
Gallup – State of the Global Workplace (2023): apenas 23% dos trabalhadores no mundo se sentem engajados; entre as principais causas do desengajamento está a ausência de clareza sobre o próprio papel.
McKinsey (2022): empresas que cultivam culturas de confiança e empoderamento são até 1,5 vez mais propensas a reter talentos em longo prazo.
Intervenções práticas para empresas
A transformação requer medidas concretas:
Treinamento de líderes
Capacitar gestores em liderança servidora e comunicação inclusiva. O líder deve agir como facilitador, não tutor.Auditoria de linguagem
Revisar manuais, comunicados e rituais corporativos para identificar termos condescendentes. Um simples “confio que você pode decidir” pode substituir “não faça nada sem me consultar”.Metas baseadas em resultados
Deslocar o foco de microtarefas para indicadores de impacto. Isso reduz espaço para controle excessivo.Feedback 360º
Permitir que colaboradores avaliem a postura das lideranças, especialmente no que se refere à autonomia.Canais de escuta
Implementar pesquisas rápidas (pulse surveys) que avaliem se os trabalhadores se sentem respeitados e valorizados.Valorização pública das conquistas
Celebrar resultados individuais e coletivos, reforçando que o sucesso de um membro da equipe fortalece todo o grupo.
Exemplos comparativos: quando autonomia gera resultados
A trajetória de Cristina Junqueira, cofundadora do Nubank, ilustra com clareza o poder da autonomia. No início da fintech, a ausência de amarras típicas dos bancos tradicionais permitiu que ela e sua equipe testassem soluções ousadas, simplificassem processos e colocassem o cliente no centro das decisões. Essa liberdade de ação não só resultou em um modelo de negócio inovador, como também transformou o Nubank em uma das instituições financeiras mais admiradas do mundo.
O caso mostra que, quando líderes confiam em seus times e mantêm pactos claros de responsabilidade, o espaço para inovação floresce. A infantilização no trabalho, por outro lado, gera paralisia: em vez de criar, as pessoas passam a esperar ordens, perdendo a chance de desenvolver habilidades estratégicas.
Indicadores de monitoramento
A saber, para avaliar se a infantilização está diminuindo, empresas podem acompanhar:
Rotatividade voluntária.
Engajamento em pesquisas internas.
Frequência de relatos de microgestão.
Absenteísmo e licenças médicas por estresse.
Número de iniciativas de inovação propostas por equipes.
Caminhos para uma cultura mais adulta e colaborativa
Certamente, a superação da infantilização exige mudança cultural. Em primeiro lugar, empresas precisam adotar uma visão que enxergue colaboradores como parceiros estratégicos, capazes de pensar, agir e inovar. Essa transformação começa pela liderança, mas se fortalece quando permeia todos os níveis da organização.
Nesse sentido, ao reconhecer que trabalhadores não precisam ser tutelados, mas sim empoderados, empresas não apenas reduzem custos invisíveis, como também ampliam seu potencial competitivo e humano.
Rumo a um ambiente de trabalho maduro
Assim, infantilizar colaboradores é um erro sutil, mas com grandes consequências. Ao retirar autonomia e reduzir papéis a tarefas mecânicas, empresas minam engajamento, inovação e saúde mental. Os custos são invisíveis no curto prazo, mas devastadores no longo prazo.
Portanto, o antídoto está em um pacto claro entre papéis e responsabilidades, sustentado por confiança, reconhecimento e cultura inclusiva. Mais do que um ajuste de gestão, trata-se de uma mudança de paradigma: tratar adultos como adultos dentro do ambiente de trabalho.
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